O anúncio da descoberta acaba de ser publicado na revista Nature Physics pelo grupo de pesquisadores ligado ao detector Solenoide Compacto de Múons (CMS, na sigla em inglês).
Da equipe internacional, composta por cerca de 4.300 integrantes (entre físicos, engenheiros, técnicos, estudantes e pessoal administrativo), participam dois grupos de cientistas brasileiros: um sediado no Núcleo de Computação Científica (NCC) da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em São Paulo, e outro no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), e na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), no Rio de Janeiro.
“O experimento mediu, pela primeira vez, os decaimentos do bóson de Higgs em quarks bottom e léptons tau. E mostrou que eles são consistentes com a hipótese de as massas dessas partículas também serem geradas por meio do mecanismo de Higgs”, disse o físico Sérgio Novaes, professor da Unesp, à Agência FAPESP.
Novaes é líder do grupo da universidade paulista no experimento CMS e pesquisador principal do Projeto Temático “Centro de Pesquisa e Análise de São Paulo” (Sprace), integrado ao CMS e apoiado pela FAPESP.
O novo resultado reforçou a convicção de que o objeto cuja descoberta foi oficialmente anunciada em 4 de julho de 2012 é realmente o bóson de Higgs, a partícula que confere massa às demais partículas, de acordo com o Modelo Padrão, o corpo teórico que descreve os componentes e as interações supostamente fundamentais do mundo material.
“Desde o anúncio oficial da descoberta do bóson de Higgs, muitas evidências foram coletadas, mostrando que a partícula correspondia às predições do Modelo Padrão.
Foram, fundamentalmente, estudos envolvendo seu decaimento em outros bósons (partículas responsáveis pelas interações da matéria), como os fótons (bósons da interação eletromagnética) e o W e o Z (bósons da interação fraca)”, disse Novaes.
“Porém, mesmo admitindo que o bóson de Higgs fosse responsável pela geração das massas do W e do Z, não era óbvio que ele devesse gerar também as massas dos férmions (partículas que constituem a matéria, como os quarks, que compõem os prótons e os nêutrons; e os léptons, como o elétron e outros), porque o mecanismo é um pouco diferente, envolvendo o chamado ‘acoplamento de Yukawa’ entre essas partículas e o campo de Higgs”, prosseguiu.
Os pesquisadores buscavam uma evidência direta de que o decaimento do bóson de Higgs nesses campos de matéria obedeceria à receita do Modelo Padrão. Porém, essa não era uma tarefa fácil, porque, exatamente pelo fato de conferir massa, o Higgs tem a tendência de decair nas partículas mais massivas, como os bósons W e Z, por exemplo, que possuem massas cerca de 80 e 90 vezes superiores à do próton, respectivamente.
“Além disso, havia outros complicadores. No caso particular do quark bottom, por exemplo, um par bottom-antibottom pode ser produzido de muitas outras maneiras, além do decaimento do Higgs. Então era preciso filtrar todas essas outras possibilidades. E, no caso do lépton tau, a probabilidade de decaimento do Higgs nele é muito pequena”, contou Novaes.
“Para se ter ideia, a cada trilhão de colisões realizadas no LHC, existe um evento com bóson de Higgs. Destes, menos de 10% correspondem ao decaimento do Higgs em um par de taus. Ademais, o par de taus também pode ser produzido de outras maneiras, como, por exemplo, a partir de um fóton, com frequência muito maior”, disse.
Para comprovar com segurança o decaimento do bóson de Higgs no quark bottom e no lépton tau, a equipe do CMS precisou coletar e processar uma quantidade descomunal de dados. “Por isso nosso artigo na Nature demorou tanto tempo para sair. Foi literalmente mais difícil do que procurar uma agulha no palheiro”, afirmou Novaes.
Mas o interessante, segundo o pesquisador, foi que, mesmo nesses casos, em que se considerava que o Higgs poderia fugir à receita do Modelo Padrão, isso não ocorreu. Os experimentos foram muito coerentes com as predições teóricas.
“É sempre surpreendente verificar o acordo entre o experimento e a teoria. Durante anos, o bóson de Higgs foi considerado apenas um artifício matemático, para dar coerência interna ao Modelo Padrão. Muitos físicos apostavam que ele jamais seria descoberto. Essa partícula foi procurada por quase meio século e acabou sendo admitida pela falta de uma proposta alternativa, capaz de responder por todas as predições, com a mesma margem de acerto. Então, esses resultados que estamos obtendo agora no LHC são realmente espetaculares. A gente costuma se espantar quando a ciência não dá certo. Mas o verdadeiro espanto é quando ela dá certo”, disse Novaes.
“Em 2015, o LHC deverá rodar com o dobro de energia. A expectativa é chegar a 14 teraelétrons-volt (TeV) (14 trilhões de elétrons-volt). Nesse patamar de energia, os feixes de prótons serão acelerados a mais de 99,99% da velocidade da luz. É instigante imaginar o que poderemos descobrir”, afirmou.
O artigo Evidence for the direct decay of the 125 GeV Higgs boson to fermions (doi:10.1038/nphys3005), da colaboração CMS, pode ser lido em http://nature.com/nphys/journal/vaop/ncurrent/full/nphys3005.html
GLOSSÁRIO
Modelo Padrão
Modelo elaborado ao longo da segunda metade do século XX, a partir da colaboração de um grande número de físicos de vários países, com alto poder de predição dos eventos que ocorrem no mundo subatômico. Engloba três das quatro interações conhecidas (eletromagnética, fraca e forte), mas não incorpora a interação gravitacional. O Modelo Padrão baseia-se no conceito de partículas elementares, agrupadas em férmions (partículas constituintes da matéria), bósons (partículas mediadoras das interações) e o bóson de Higgs (partícula que confere massa às demais partículas).
Férmions
Assim chamados em homenagem ao físico italiano Enrico Fermi (1901-1954), prêmio Nobel de Física de 1938. Segundo o Modelo Padrão, são as partículas constituintes da matéria. Compõem-se de seis quarks (up, down, charm, strange, top, bottom), seis léptons (elétron, múon, tau, neutrino do elétron, neutrino do múon, neutrino do tau) e suas respectivas antipartículas. Os quarks agrupam-se em tríades para formar os baryons (prótons e nêutrons) e em pares quark-antiquark para formar os mésons. Em conjunto, baryons e mésons constituem os hádrons.
Bósons
Assim chamados em homenagem ao físico indiano Satyendra Nath Bose (1894-1974). Segundo o Modelo Padrão, os bósons vetoriais são as partículas mediadoras das interações. Compõem-se do fóton (mediador da interação eletromagnética); do W+, W− e Z (mediadores da interação fraca); e de oito tipos de glúons (mediadores da interação forte). O gráviton (suposto mediador da interação gravitacional) ainda não foi encontrado nem faz parte do Modelo Padrão.
Bóson de Higgs
Nome em homenagem ao físico britânico Peter Higgs (nascido em 1929). Segundo o Modelo Padrão, é o único bóson elementar escalar (os demais bósons elementares são vetoriais). De forma simplificada, diz-se que é a partícula que confere massa às demais partículas. Foi postulado para explicar por que todas as partículas elementares do Modelo Padrão possuem massa, exceto o fóton e os glúons. Sua massa, de 125 a 127 GeV/c2 (gigaelétrons-volt divididos pela velocidade da luz ao quadrado), equivale a aproximadamente 134,2 a 136,3 vezes a massa do próton. Sendo uma das partículas mais massivas propostas pelo Modelo Padrão, só pode ser produzido em contextos de altíssima energia (como aqueles que teriam existido logo depois do Big Bang ou os agora alcançados no LHC ), decaindo quase imediatamente em partículas de massas menores. Após quase meio século de buscas, desde a postulação teórica em 1964, sua descoberta foi oficialmente anunciada no dia 4 de julho de 2012. O anúncio foi feito, de forma independente, pelas duas principais equipes do LHC, ligadas aos detectores CMS e Atlas do LHC. Em reconhecimento à descoberta, a Real Academia Sueca concedeu o Prêmio Nobel de Física de 2013 a Peter Higgs e ao belga François Englert, dois dos propositores da partícula.
Decaimento
Processo espontâneo por meio do qual uma partícula se transforma em outras, dotadas de massas menores. Se as partículas geradas não são estáveis, o processo de decaimento pode continuar. No caso mencionado no artigo, o decaimento do bóson de Higgs em férmions (especificamente, no quark bottom e no lépton tau) é tomado como evidência de que o Higgs é o gerador das massas dessas partículas.
LHC
O Grande Colisor de Hádrons é o maior e mais sofisticado complexo experimental já possuído pela humanidade. Construído pelo Cern ao longo de 10 anos, entre 1998 e 2008, consiste basicamente em um túnel circular de 27 quilômetros de extensão, situado a 175 metros abaixo da superfície do solo, na fronteira entre a França e a Suíça. Nele, feixes de prótons são acelerados em sentidos contrários e levados a colidir em patamares altíssimos de energia, gerando, a cada colisão, outros tipos de partículas, que possibilitam investigar a estrutura da matéria. A expectativa, para 2015, é produzir colisões de 14 TeV (14 trilhões de elétrons-volt), com os prótons movendo-se a mais de 99,99% da velocidade da luz. O LHC é dotado de sete detectores, sendo os dois principais o CMS e o Atlas.
Agência FAPESP
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